quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Coroas para Torquato Neto


um dia as fórmulas fracassam
a atração dos corpos cessou
as almas não combinam
esferas se rebelam contra a lei das superfícies
quadrados se abrem
dos eixos
sai a perfeição das coisas feitas nas coxas
abaixo o senso das proporções
pertenço ao número
dos que viveram uma época excessiva


Paulo Leminski
(Revista USP, n. 3, 1989, p. 104).

segunda-feira, 15 de julho de 2013

fantasma camarada





[Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 08/11/1992]

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Jornal "O Dia" - página "Domincultura" - última entrevista de Torquato Neto



Esta foi a última entrevista de Torquato Neto, que foi concedida ao jornalista Meneses y Morais. A entrevista foi foi publicada no dia 18 de junho de 1972 do suplemente "Domincultura" do Jornal "O Dia", de Teresina, no Piauí.


Torquato Neto: verbo desencantado


Menezes y Morais - Em que ano você arribou do Piauí? 

Torquato Neto - Em fins de 1959, quando terminei o Ginásio, e no início de 60 eu fui estudar o Científico na Bahia. 

MM - Como você se ligou com a turma Tropicália? 

TN - Essa história é muito manjada. Eu fui estudar na Bahia e lá encontrei, conheci um bocado de gente no Colégio e tal; dentre estes tinha um que era amigo de outro e tal e tal, e nessa cirandinha eu cheguei a conhecer Caetano; depois eu conheci Gil; depois eu fui embora pro Rio de Janeiro em 1962, eles ficaram lá; quando foi em 65, tem aquela história conhecidíssima: Bethânia foi pra Bahia (sic) e ai começamos a fazer música, todo mundo. Isto é: a gente fazia música, brincava com música, mas o nosso papo mesmo era cinema; era o que a gente queria fazer mesmo. 

MM - Qual a sua primeira música? 

TN - É uma música que tá gravada por Gal no Lp Domingo, de Cae e Gal: é uma seresta chamada Nenhuma Dor. 

MM - É verdade que Maiakósvki exerceu influência sobre os meninos da Tropicália? 

TN - Maiakósvki exerceu influência sobre todo mundo que faz poesia, eu acho (Pausa, um sorriso. Balança a rede e prossegue). Em 68, a gente começou um trabalho, que depois passou a ser chamado tropicalismo. (Essa história de “Ismo” é muito chata, reduz a coisa a uma coisa momentânea, e a Tropicália é uma coisa de repercussão enorme, além do prazo). 

MM - Você falou que o escopo da turma da Bahia era o cinema. E como foi isso? 

TN - A experiência era só de cineclubismo mesmo. A gente era viciado em cinema. Falava-se nisso de manhã, de tarde, de noite. Nessa época Glauber Rocha, era por volta de 60, começou na Bahia o movimento Cinema Novo e foi justamente nessa época em que ele filmava Barravento, o primeiro grande filme brasileiro da época. E nós fizemos então um filme que, na verdade, foi dirigido por Alvinho Guimarães, que terminou hoje em dia sendo editor do Verbo encantado - que já acabou no vigésimo número, há poucos dias. O filme chamava-se Moleques de rua, feito por todos nós, Alvinho, Caetano, Duda, eu e mais alguém que se perdeu no tempo. 

MM - Torquato, na escola, gostava de Matemática?

TN - Eu... (Sorrisos). Não. Eu estudava as coisas direitinho. Mas, o que eu gostava mesmo era de escrever.  

MM - Você terminou o curso superior?

TN - Fiz dois anos de Científico na Bahia e o terceiro no Rio. Ai, fiz vestibular pra Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil; fiz vestibular pro curso de Jornalismo e cursei até o segundo ano. Ai, achei que o negócio tava muito chato e larguei. 

MM - Torquato gosta de banana, laranja, melancia, tangerina, caju... agora, conta pro leitor como é que foi aquela coluna Geleia Geral, sua, na Última Hora. 

TN - Era uma coluna diária onde eu abordava problemas gerais. O problema de vida que nós tivemos que enfrentar uma geração inteira. Eu tentei, durante nove meses, fazer uma coluna reflexa, um alto-falante, um retrospecto também... exatamente no momento em que o Pasquim tava falindo, como uma coisa realmente importante, quente. Depois que deixei de curtir a coluna, eu deixei de fazer. 

MM - Como o público se comportou, em relação à mesma? 

TN - Muito bem. Minha coluna era lida exatamente pelas pessoas que eu gostaria que lessem. Pela juventude do Rio de Janeiro. Cabeludos em geral... 

MM - Qual o poeta ou os poetas que influenciaram realmente na sua poesia? 

TN - Quando eu sai de Teresina, os poetas que eu conhecia eram aqueles dos textos de escola: Castro Alves, Gonçalves Dias etc. A poesia moderna eu não conhecia nada. Naquela época, no Piauí, não tínhamos acesso a isso. Na Bahia, eu tive um contato imediato com essas coisas, como Carlos Drummond de Andrade. Drummond foi o cara que mais me interessou, logo de cara, me impressionou, sei lá. Aí, fui lendo João Cabral de Melo Neto, a secura do Engenheiro, da Faca, coisa seca, agreste, de Cabral. Depois, li outros poetas etc. Mas, hoje em dia, o negócio importante para mim é a poesia concreta, lá de São Paulo, e o resultado do trabalho que a gente tem tentado desenvolver. E o que eu queria dizer aqui é que a Tropicália, no sentido da música, foi uma radicalização tão grande quanto a poesia concreta também foi no sentido da poesia. Quer dizer, a gente mexeu exatamente com a forma da música brasileira. E eu acredito sinceramente que isso é a coisa mais importante em qualquer processo cultural. Ou você mexe com a forma, ou então não mexe com nada. 

MM- Onde e com quem nasceu a poesia concreta? 

TN - Nasceu em São Paulo, exatamente com a trinca Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. O nome “poesia concreta” apareceu pela primeira vez no contexto internacional, no importantíssimo suplemento literário do Times de Londres, aí por 61, 62, não sei direito, não me lembro. 

MM - Conta pro leitor como é a coleção Na Corda Bamba. 

TN - É uma coleção editada por José Álvaro Editor. Dirigida por José Carlos Capinan e pelo poeta Waly Salomão. É uma literatura experimental. José Álvaro se interessou com o trabalho desta turma que está trabalhando nisto: novas experiências com a poesia, com o texto, com a linguagem e não com a língua brasileira (sorri). Então, A Corda Bamba já vai sair o primeiro livro: de WS... Me segura que eu vou dar um troço. Em seguida, o livro de Jorge Mautner Fragmentos de Sabonete, depois tem o livro de Bivar e depois é o livro que eu estou preparando agora, que, aliás, eu nem sei se vou terminá-lo todo, porque eu tou mais interessado é em cinema. Ele chama-se Pesinho pra Dentro, Pesinho pra Fora. Bom, Corda Bamba é isso, amizade. É uma oportunidade que um editor tá dando pra que jovens poetas consigam mostrar, lançar as suas produções experimentais. Eu sempre escrevi muito, principalmente poesia. Mas nunca pensei em publicar livros. Eu preferi utilizar a poesia na música. Se agora eu estou tentando preparar esse livro é a pedido de amigos. Já fizemos três filmes, um dos quais foi exibido recentemente no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, ainda não foi possível uma exibição deste no Brasil e tá sendo exibido agora no circuito universitário dos E. U. A.. E aqui, em Teresina, eu cheguei com essa ideia: fazer um filme aqui. Aí me encontrei com o Edmar, Galvão, Noronha, essa turma aí, e eles tavam tentando fazer um filme também e então eu me enturmei com eles e tamos aí, já fizemos Adão e Eva na Sociedade de Consumo, feito por eles, no qual eu trabalho como ator. Logo depois eu pretendo começar um longa-metragem meu, feito com eles e outras pessoas que eu ainda vou convidar. É um filme intitulado Idade, Cidade Verde. 

MM - O que você vai fazer quando terminar tudo isso?

TN - Ir pro Rio de Janeiro (pausa). Eu moro lá, né? (ilustra a frase com um sorriso de azul e branco. Isto é: um sorriso branco dentro do azul da tarde...). Quando este filme for exibido eu pretendo fazer outros, eu não quero mais parar de fazer cinema. 


[Entrevista publicada no jornal O Dia, Domincultura, 18 de junho de 1972]


quinta-feira, 14 de março de 2013

Não mais que de repente


.. Lírico. É como se eu estivesse vendo: a rua que descia até o rio, a estranha nova que se abria do outro lado, o apito da usina, a voz do cajueiro. Entrava pela boca do pato e saia pela boca do pinto – dava um tempo e contava até cinco. Era aí que tudo recomeçava, um dia depois do outro e para sempre todo santo dia. 

..Era de dia. Meu avô de pé na porta e o Tico Tico no Fubá tocando longe. A rua escorria tranquila em direção ao rio. Quem diria? Um quadro depois do outro: gozado como a cor de tudo, vista daqui, não dava pra chegar a verde-verde, azul-azul, vermelho no duro: tudo meio cinza, desbotado, enfumaçado. Mas tudo tão presente, agora. Por que?

Fernando Pessoa fala diferente. 

A mesma coisa... 

“Outra vez te revejo.

Cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar. E aqui de novo tornei a voltar? Ou somos todos os Eu que estive ou estiveram, Uma série de contas-entes ligadas por fio-memória. Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? Outra vez te revejo, com o coração mais longínquo, a alma menos minha”.

E não tem mais nada não: é a mão sem mão e o pé no chão. E se interessar a alguém maiores detalhes eu aviso: só acredito mesmo naquilo que não falo. Como o cidadão da foto ao lado. Até breve.

TORQUATO NETO. In: A Hora Fatal [Jornal A Hora], Teresina, 16.07.1972

Torquato Neto: Conversa entre Décio Pignatari e Régis Bonvicino



Régis Bonvicino: Como você situaria Torquato? Um poeta letrista ou um poeta que fazia poesia escrita?

Décio Pignatari: Torquato era um criador-representante da nova sensibilidade dos não especializados. Um poeta da palavra escrita que se converteu à palavra falada, não só à palavra falada idioletal brasileira, mas à palavra falada internacional. A palavra falada do Português do Brasil – e não o brasileirês, fosse piauiense, baiano, carioca ou paulista. Não era de folclorizar a língua. Nisto seguia João Gilberto mais de perto do que os seus companheiros baianos. Era mais de ideologia do que de magia.

 RB: O trabalho de Torquato representa, a meu ver, a projeção de certos modos de operar da arte construtivista, como a montagem, numa sensibilidade pop. Você concorda com isto? 

DP: Talvez que o pop-construtivismo seja insuficiente para caracterizar o traço distintivo de Torquato, já que poderia ser aplicado a outros, na música e fora dela. Mas, se aceitarmos a ideia, que me parece interessante, ele estaria mais para Antonio Dias do que para Hélio Oiticica. Torquato não confundia Oswald de Andrade com Zé Celso. Outros podiam esconder a cabeça, ter receio de parecer high brow. Não Torquato. Seu repertório cultural era mais amplo, seus roteiros mais seguros. A expressão geleia geral, que criei e empreguei em 1963, numa discussão com Cassiano Ricardo, ao expulsá-lo da revista Invenção, transformou-se num miniprograma crítico-criativo para Torquato, que não só a utilizou na letra famosa dos tempos da Tropicália, como com ela batizou a coluna que manteve no Última Hora, do Rio de Janeiro. Seu modo de proceder na montagem/colagem/bricolagem tinha certa orientação, não era errático.

RB: Você afirmou, num de seus últimos artigos, que Oswald de Andrade foi o elemento radicalizador do processo de renovação empreendido pelos nossos modernistas. Este mesmo raciocínio poderia ser transposto para Torquato em relação ao Tropicalismo? 

DP: Não sendo cantor ou compositor, é provável que se sentisse atraído para uma visão cultural mais ampla, uma vez que seu engajamento crítico-criativo não podia compromissar-se com a necessidade de manter a “solidariedade baiana” do movimento. Embora reconheça nele uma vocação para o radical, não acho que tenha representado a função oswaldiana a que você se refere. Se houve tal ponta de lança radical, ela foi antes representada por Rogério Duprat. Quem ouve música e não apenas letra pode constatar isso. Em complexidade e qualidade, não há nada semelhante aos arranjos de Duprat na MPB. Prefiro dizer que Torquato foi o Mário Faustino do tropicalismo, o Mário tragicamente morto dez anos antes. Ambos, mortos vocacionais. 

RB: Qual a importância de Torquato como articulista, polemista e ator, para o surgimento de um novo cinema (Rogério Sganzerla, Júlio Bressane) em oposição ao “cinema novo”? 

DP: Separado dos baianos, migrou para outros códigos. De sua coluna, no Última Hora carioca, infelizmente de curta duração, abriu fogo contra o cinema novo, que já estava se academizando nos cargos e verbas oficiais. E apoiou a marginalidade dos experimentalistas (e isto poderá ter-lhe custado a coluna), como Sganzerla, Bressane, Ivan Cardoso, Luis Otavio Pimentel, que representavam o lado urbano universalista do cinema brasileiro. Como ator, foi Nosferatu vampirizando baianos, no super-8 do Ivanzinho. Como editor, estava montando, junto com Waly Salomão, a Navilouca, que Caetano viria a copatrocinar depois, como homenagem póstuma. Com sua morte prematura, completou o retrato falado de um cult artist.

RB: Você me contou, em conversa, que esteve com Torquato na véspera do suicídio. Fale um pouco sobre isso. 

DP: Poucos contatos tivemos no início. Calado, recolhido, tímido. A diáspora dos Beatles. A desastrada, senão desastrosa viagem a Londres, o rompimento com os baianos no duro exílio, quando também os visitei, em 70. As mortes de Jimi Hendrix e Janis Joplin. Foi nos últimos dois anos que tivemos ligação um pouco mais estreita, eu lecionando na ESDI, ponte aérea. Naquela noite, a de seu aniversário, tínhamos assistido a um filme cinemascópico do Sganzerla (de que não gostei, dizendo que me lembrava de A Queda do Império Romano…). Por alguma razão careta, eu estava de saco cheio e não quis ir à festa. Combinei com Luiz Otávio para ver, no dia seguinte, às dez da manhã, no Cine Zero Hora, da avenida Rio Branco, o seu curta sobre Oswald. Era um sábado, acho. Disse-me que deixara Torquato em casa de Ana, às 3 da madrugada. Vi o filme e me mandei rapidinho para o Aeroporto Santos Dumont. Em São Paulo, mais do que depressa, fugi para o meu estúdio, recém-inaugurado, a 30 km de distância. Era novembro, eu estava ultimando a minha tese de doutoramento, Semiótica e literatura, juntamente com uma tese subsidiária sobre cinema, onde pela primeira vez se levava a sério a obra deles no âmbito universitário. Voltei para casa no domingo à noite, quando li, estupefato, na seção de arte de um jornal paulistano, a manchetinha: Enterrado Torquato Neto.

In: Sibila - Poesia e Critica Literária. 

terça-feira, 19 de junho de 2012

Em nome do pai



Thiago Araújo sobrevoa memórias e fala do pai que, praticamente, não conheceu. O menino tinha apenas dois anos de idade quando Torquato Neto partiu. Por telefone, ele conversou com o Vida & Arte.

Thiago Araújo é filho único de Torquato Neto. Herdou do pai a semelhança física, um certo jeito de olhar, a inquietação ao falar, a dificuldade para dormir. E foi ser piloto. Voa há 16 anos. 

De poesia, não gosta e diz que nem entende. ''Hereditário é doença não é talento'', costuma responder. Mas gosta de saber do poeta Torquato, ler seus escritos, ouvir amigos contando histórias. Formas de transpôr a distância do tempo. 

Hoje, Thiago mora um pouco em Fortaleza, um pouco no Rio de Janeiro. Esta semana, ele estava lá e a conversa teve que ser por telefone. (Sílvia Bessa) 

O POVO - Você tem alguma lembrança do seu pai? 

Thiago Araújo - Bom, lembrança eu não tenho porque quando ele morreu eu tinha dois anos. Mas tem uma cena só que eu não sei se lembrei do tanto que me disseram ou se me lembro mesmo... A lembrança que tenho construí depois dos 16 anos de idade, foi quando fui entender um pouco como é que ele era. Uma professora do colégio, numa aula de literatura, falou do meu pai, contou várias histórias e eu falei: sou filho dele. Ela achou genial, sentou comigo depois da aula e falou horas. Depois disso fui me interessando e construindo a imagem que tenho hoje dele. Até hoje leio muito.

OP - Havia muita cobrança das pessoas que conheciam teu pai? O filho do Torquato ter que ser inquieto, poeta, cineasta, artista. 

TA - Isso tem até hoje. Outro dia mesmo, um amigo que trabalha comigo falou ''Pô cara, você é filho do Torquato? Que legal! Você não escreve poesia?' Como eu sempre digo, hereditário é doença não é talento! Não vou me meter no que não sei. A herança foi só física, eu acho.

OP - As pessoas reconhecem que você é filho do Torquato pela semelhança física? 

TA - Aconteceu várias vezes, em bar, no meio da rua... Há pouco tempo Jards Macalé falou comigo porque lembrou meu pai. ''Você é filho do Torquato? É muito parecido com ele!'. ''De fato sou''. Acontece muito. Ainda mais depois que saiu essa coletânea (Todo dia é dia D). Tem uma foto interna que nem eu conhecia, dá pra ver que somos muito parecidos.

OP - Como é que foi em casa. Vocês falavam em casa sobre o Torquato? 

TA - Acho que pelo fim trágico que houve, minha mãe evitou falar assim até uma certa idade, sabe? Era uma forma de proteção. Ela só veio a falar depois de um certo tempo e ainda assim porque procurei saber. Também vim a saber dele através dos amigos que continuaram freqüentando a minha casa, da minha mãe (Ana Maria Duarte), depois que ele morreu. Era um bando de maluco, umas figuras bem loucas. 

OP - Quem, por exemplo? 

TA - Tipo Damião Experiença, um oficial da Marinha que caiu uma vez de cima de um mastro com a testa no convés do navio, se aposentou e virou artista. Era muito amigo do meu pai. Ele grava uns CDs por uma gravadora chamada Planeta Lama, que ele sozinho vende nas calçadas. Meu pai tinha uma característica interessante que minha mãe contou: tinha uns amigos que só ele conseguia aturar, só ele gostava, ninguém conseguia suportar as pessoas e ele era muito amigo. Então, eu me lembro muito dessas figuras que eram muito diferentes dos pais dos meus amigos de colégio. Final de semana eu ia pra casa de um amigo meu e achava tudo meio careta, mesmo sem saber direito o que era ser careta ou não.

OP - Teu pai nasceu no Piauí, morou um bom tempo na Bahia, e depois foi pro Rio de Janeiro. Você nasceu no Rio mas tem alguma identificação com o Nordeste? 

TA - Claro que tenho. Minha mãe é baiana, meu pai piauiense e eu morei aí, ainda moro um pouco.

OP - Você visitava Fortaleza quando era criança. Vinha para casa de amigos da sua mãe. Em que momento decidiu vir morar aqui? 

TA - Eu sempre fui a Fortaleza desde pequenininho. Até pela proximidade com Teresina, quando eu ia passar férias lá, passava por aí.

OP - Você tinha esse contato próximo com seus avós? Passava as férias em Teresina? 

TA - Quando eu era pequeno, não sei se por exigência dos meus avós, era obrigado (risos), mas como eu não conseguia ficar um mês em Teresina dava um jeito de fugir para Fortaleza. Hoje, eu moro meio aí, meio aqui. Mas eu sempre fui a Teresina.

OP - Seu pai passou por Fortaleza? 

TA - Acho que não. Eu não tenho certeza mas nunca vi nenhuma referência sobre isso. Nas várias matérias que venho juntando há muito tempo nunca citaram que ele tenha estado em Fortaleza. Ele ia muito a Salvador. Tinha uma relação forte com a Bahia e com o Rio, que era pra onde a turma vinha naquela época porque era aqui que as coisas aconteciam naquele tempo. Hoje, nem tanto mais.

OP - Mas ele sempre voltava pra Teresina. 

TA - Quando ele ficava inquieto, a primeira coisa que fazia era voltar pra Teresina. Um lugar onde ele se acalmava. Talvez pelo ambiente de casa, não sei exatamente o porquê. Mas nas crises era a primeira coisa que ele fazia. 

OP - Você se acha parecido com ele? 

TA - Outro dia a minha mãe falou: ''Impressionante essa coisa que você tem do seu pai''. Tenho uns amigos que todos acham insuportáveis, mas eu adoro, acho eles maravilhosos. Meu pai era a mesma coisa. E também sou inquieto o tempo todo, tenho dificuldade pra dormir.

OP - Seu pai tinha momentos de muito recolhimento, de entrar no mundo dele pra procurar um equilíbrio. 

TA - É isso eu não tenho não. Mas sabe uma coisa: embora ele tivesse essas coisas de loucura que tinha, todo mundo sempre fala que ele era uma pessoa extremamente amável, carinhoso. Acho que isso eu não sou muito, sou mais frio, distante. Mas várias pessoas citam que ele gostava de abraçar os outros. Meu avô também é assim.

OP - O Doutor Heli? 

TA - É. Se passa criança na rua, ele levanta pra dar um beijo sem nem saber quem é, coloca no chão e continua andando.

OP - Teu pai foi um dos pensadores da Tropicália. E foi um excelente letrista. Isso influenciou de alguma forma teu gosto musical? 

TA - Desde adolescente, eu sempre gostei de Caetano Veloso mas porque era o que eu escutava em casa. Era só o que tinha em casa. Meus amigos escutavam muita coisa de rádio FM naquele tempo e eu achava chatíssimo, gostava de escutar Transa, do Caetano. Escutava Jimi Hendrix muito antes da idade em que todo mundo começa a escutar. E coisas de literatura... literatura de vanguarda, revista Pólen, umas coisas de poesia que tinha lá em casa que eu ficava folheando quando era pequeno sem saber o que era direito. Tinha uma foto lá em casa do meu pai vestido de vampiro em Copacabana no meio da rua e o Wally Salomão vestindo um barril com duas alças. Tinha isso na sala! Se eu não me engano era um pôster que vinha nas páginas centrais de uma revista. Cresci achando essas coisas normais.

OP - Tinha outras coisas do teu pai espalhadas pela casa? 

TA - Minha mãe tinha muito jornal, as colunas dele, as coisas que ele produzia. E na casa dos meus avós em Teresina tinha muita foto dele. Como ele era filho único, era foto pela casa inteira. Coisa de mãe, né? Parecia que lá eu ficava convivendo com ele. Minha mãe guardava mais essa parte do trabalho. Era como se os dois lados se complementassem.

OP - Em relação à literatura, você se interessa pelo trabalho do seu pai? 

TA - Desde cedo eu tive contato com poesia de vanguarda e não entendia nada, achava sem pé nem cabeça. Aí eu cresci e continuei sem me interessar muito.

OP - Você é piloto há quanto tempo? 

TA - Espera aí. (Faz um pouco de silêncio) Caramba! É isso mesmo. Tive que contar de novo porque pensei que estava errado. Mas são 16 anos. Comecei com 16. Comecei curso de pilotagem aos 15 e comecei a voar com 16 e estou trabalhando na Varig há 12 anos.

OP - O que você mais gosta na profissão? 

TA - Eu sempre gostei de aviação, embora não goste muito de viajar. Ao contrário da maioria que escolhe a profissão pelo fato de estar sempre em um outro lugar, eu não gosto muito disso. Tanto que a melhor época da minha vida foi quando eu trabalhei na ponte aérea Rio-São Paulo e dormia todo dia em casa. Essa história de estar dormindo em hotel, arrumando e desarrumando mala não faz muito a minha, não. O meu sonho é morar em Fortaleza, fazendo a ponte aérea Fortaleza-Jijoca-Fortaleza (risos). Nunca consegui me identificar com uma profissão tradicional. Pra desespero da minha avó por parte de pai que queria que eu fosse - acho que por causa do filho que foi a primeira decepção dela - engenheiro, doutor ou advogado.

OP - Você está ajudando de alguma forma o Toninho Vaz, que está fazendo a biografia do seu pai? 

TA - Estou. Ele fez a biografia do Paulo Leminski que ficou muito legal: O Bandido que sabia latim. Excelente. Não sei em que parte ele está mas sei que está em andamento. A vontade dele é compreender como uma pessoa que morreu tão nova, como meu pai, pode até hoje ser tão falada. Como uma pessoas viveu tão pouco e produziu tanto. (...) Eu estava aqui procurando o livro Os Últimos Dias de Paupéria que eu tenho e acabei de descobrir que ele se encontra aí em Fortaleza. Às vezes tem disso, eu quero pegar um negócio e está aí em Fortaleza. Eu queria encontrar para ler umas passagens que acho fantásticas. São textos que ele escreveu quando fazia os auto-exílios em Teresina, no Meduna. Era um hospício onde ele se auto-internava.

TRECHOS
''10/10
(...)
Pela primeira vez estou sentindo de fato o que pode ser uma prisão. Aqui, as portas que dão para as duas únicas saídas existentes, estão permanentemente trancadas - e há uma pequena grade em cada uma delas, de onde se pode ver os corredores que dão para as outras galerias. Depois delas, uma espécie de liberdade. Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de aproximadamente 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais - de qualquer maneira esperamos a ''cura'' no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se ''regenerem'' etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista - e são aqueles homens de branco sobre os quais Rogério se referiu um dia, há pouco tempo. Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima''

''13/10

Eu: pronome pessoal e intransferível. Viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. A prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. E o dr. Oswaldo? Não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?''


Trechos de Os Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto. 


Entrevista publicada no jonal O Povo, de Fortaleza - CE, no dia 9 de novembro de 2004.
 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Tropicalismo para principiantes



Um filme, chamado “Bonnie and Clyde” está fazendo agora um tremendo sucesso na Europa. E com uma força tão grande que sua influência estendeu-se à moda, à música, à decoração, às comidas e aos menores hábitos das pessoas. São os anos trinta que estão sendo revividos. Bem por dentro dessa história e à procura de um movimento pop autenticamente brasileiro, um grupo de intelectuais reunidos no Rio – cineastas, jornalistas, compositores, poetas e artistas plásticos – resolveu lançar o Tropicalismo. O que é? 

Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido. Eis o que é.

Porta-voz do tropicalismo, por enquanto. É o jornalista e compositor Nelson Motta, que divulgou essa semana, num vespertino carioca, o primeiro manifesto do movimento. E fazem parte dele, entre outros: Caetano Veloso, Rogério Duarte, Gilberto Gil, Nara Leão, Glauber Rocha, Carlos Diégues, Gustavo Dhal, Antônio Dias, Chico Buarque, Valter Lima Jr. e José Carlos Capinam. 

Muitas adesões estão sendo esperadas de São Paulo e é possível que Rogério Duprat, Júlio Medaglia e muita gente mais (os irmãos Haroldo e Augusto, Renato Borghi etc.) tenham suas inscrições efetuadas imediatamente. O papa do Tropicalismo – e não poderia faltar um – pode ser José Celso Martinez Correa. Um deus do movimento: Nelson Rodrigues. Uma musa: Vicente Celestino. Outra musa: Gilda de Abreu. 

O Tropicalismo, ou Cruzada Tropicalista, pode ser lançado qualquer dia desses numa grande festa no Copacabana Palace. A piscina estará repleta de vitórias-régias e a pérgula enfeitada com palmeiras de todos os tipos. Uma nova moda será lançada: para homens, ternos de linho acetinado branco, com golas bem largas e gravatas de rayon vermelho; as mulheres devem copiar antigos figurinos de Luiza Barreto Leite ou Iracema de Alencar. Em casa, nada de decorações moderninhas, rústicas ou coloniais. A pedida são móveis estofados em dourado e bordô, reproduções de Osvaldo Teixeira e Pedro Américo, bibelôs de louça e camurça, retratos de Vicente Celestino, Emilinha Borba e Cézar de Alencar. Nada de Beatles, nada de Rolling Stones. E muitos pufes, centenas de almofadas. 

O Dia das Mães, o Natal e o reveillon do jaguar serão as grandes festas do Tropicalismo, que exige eventos e efemérides. 25 de agosto é data importantíssima. E ninguém perderá uma parada de 7 de Setembro. Desfile de escolas de samba (em cadeiras numeradas) e o baile do Municipal são obrigatórios. Revistas de Gomes Leal, shows de Carlos Machado e filmes de Mazzaropi serão assuntos discutidíssimos. Cinerama também. Um ídolo: Wanderley Cardoso. Uma cantora: Marlene. Um intelectual: Alcino Diniz. Um poeta: J.G. de Araújo Jorge. Um programa de TV: Um Instante Maestro. Uma canção: “Coração Materno”. Um gênio: Chacrinha. 

E daí para a frente. Aliás, os líderes do Tropicalismo anunciam o movimento como super-pra-frente: 

- É brasileiro, mas é muito pop. 

O que, no fundo, é uma brincadeira total. A moda não deve pegar (nem parece estar sendo lançada para isso), os ídolos continuarão os mesmos – Beatles, Marilyn, Che, Sinatra. E o verdadeiro, grande Tropicalismo estará demonstrado. Isso, o que se pretende e o que se pergunta: como adorar Godard e Pierrot Le Fou e não aceitar “Superbacana”? Como achar Felinni genial e não gostar de Zé do Caixão? Porque o Mariaaschi Maeschi é mais místico do que Arigó? 

Tropicalismo pode responder: porque somos um país assim mesmo. Porque detestamos o Tropicalismo e nos envergonhamos dele, do nosso subdesenvolvimento, de nossa mais autêntica e imperdoável cafonice. Com seriedade.

Esse texto está contido no livro "Torquatália: do lado de dentro" de organização de Paulo Roberto Pires, todavia essa versão foi retirada do site Tropicalia.