PAULO LEMINSKI *
Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato Neto perfez o fadário de todo vampiro que se preza, percorrendo a sina dos “não mortos”.
Torquato Neto é, talvez, o único mito poético dessa geração que aí está, “mito”, aqui, no sentido originário de figura-síntese de uma idéia com força e valor coletivos. Arquétipo. Modelo. Forma-cristal. Para esta geração (como delimitá-la?). Torquato encarna um dos mitos mais caros da nossa gente: o mito do poeta morto jovem. Esse mito, de extração romântica, tem uma linhagem que começa no Werther de Goeth, passa por Musset, Nerval, , entre nós, por Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, os “prematuros desaparecidos”, em contraposição às próperas longevidades de um Drummond, por exemplo.
Esse mito, certamente, é um pálido reflexo do mais profundo mito do mundo mediterrâneo e, por extensão, do ocidente: o de um deus jovem, que dá a vida pelos que nela crêem: Adônia, Osíris, Jesus. Essa idéia para um chinês, um japonês, um oriental, um budista, é perfeitamente absurda.
“Credo quia absurdum”.
Nós todos acreditamos em Torquato.
Afinal, a auto-imolação não é gesto ao alcance de qualquer um.
A vida de Torquato Neto não interessa. Não interessa a vida de ninguém. Eu não aceito esse ponto de vista. Acho até que, em certos poetas, o desenho da vida pode ser um poema. Não se escreve só com palavras. Grava-se com o corpo, o gesto, a atitude. O comportamento, sartreanamente, com as escolhas globais.
Tem poetas nos quais importam, também, a peripécia contextual que cerca seu fazer e seus feitos: a gesta total, o ser-signo inteiro.
O que se sabe de Torquato: um poeta de província (Piauí? Goiás? Santa Catarina?), um dos letristas da Tropicália, suicidou-se, parece. Pouco se sabe de Torquato. Felizmente. Mito que se preza não tem biografia. As biografias têm a irritante mania de reconduzir os mitos das suas rarefeitas altitudes para as platitudes da humana condição. Vai ver, no fundo, Torquato era pessoa como qualquer um de nós, esse Qualquer Um de Nós que pena atrás da grana, engole cara feia de patrão e exulta, como os escravos, no dia da distribuição dos pães; Conhece “aquela pessoa”. Deixa traços de sua passagem. E passa.
Ainda brilha o dia tropicalista, que raiou na poesia brasileira, nos idos de 68. Foi a época em que nós todos começamos a nos tratar de loucos. Até ali, loucura era insulto.
Nós desfraldamos a loucura como o fervor de quem empunha uma bandeira. Feudianos, a loucura foi igual para todos. Mais alguns foram mais loucos que os outros. Não há democracia no reino da loucura. Torquato foi um príncipe da loucura, um Ludwig da Baviera no Posto Seis. E lá estava Torquato nos alvores do dia tropicáustico, tropicalmo, as mãos cheias de versos, frases claras, frases raras, armas, araras. Torquato marca uma mudança radical, um salto qualitativo, na história disso que se chama, na falta de termo melhor, poesia brasileira.
Poesia que, hoje, não apenas se lê nos livros, mas se escuta nas canções, nos discos, nos rádios, na TV, na vida, enfim.
Torquato tem muito que ver com isso.
O seqüestro da poesia pela literatura foi longo como o seqüestro dos diplomatas norte-amercianos pelos iranianos do Aiatolá Khomeini. No Brasil, foi o tropicalismo quem a libertou.
Com esse des-movimento (que cuidou do próprio enterro, encenado na TV, pelas suas principais estrelas), irrompem na cena brasileira, como é de conhecimento de todos os leitores do “Folhetim”, poetas de primeiríssima ordem, se expressando, não em livros mas em discos. Bota Chico Buarque nisso.
Absolutamente, Caetano, e seus companheiros, Gil, a seguir, Capinan, Tom Zé, o que a gente tem vontade de acrescentar, tudo de melhor que, em letra veio algo depois: Galvão, dos Novos Baianos, Waly sailormoon, Duda Machado, todos letristas do período imediatamente pós-tropicália.
Porque, com Torquato, começa a existir essa estranha estirpe de poetas: os letristas. Patrulhas dos mandarins das Belas Letras gostariam de lhes negar até o pretigioso título de poetas. E relegar a poesia da letra de música ao sub-solo da subliteratura.
A poesia da letra de música seria fácil, carregada de redundância e banalidade, laborando sobre sentimentos elementares, girando em torno de meia dúzia de situações prototípicas: boy meets girl, que bom, ela me ama, azar, ela não me ama mais, como era bom quando ela me amava, quem me dera uma paisagem assim e assado para transar com meu amor, as venturas e desventuras daquele amor romântico, inventado pelos trovadores provençais, os antepassados diante dos músicos-poetas do mundo pop.
Só que a arte desses trovadores provençais (Arnaut Daniel, por exemplo) em nível de palavra é de teor tal, que coloca alguns deles entre os mais altos criadores da lírica de todas as épocas. Com ou sem música.
Dias atrás, li, numa das principais revistas brasileirasm a resenha de um disco de Chico Buarque, na qual o comentarista falava da poesia de Caetano, botando a palavra “poesia” entre aspas, acrescentando ainda um “digamos”, a “poesia” de Caetano. A questão é saber: mantemos ou tiramos as aspas, quando falarmos da poesia (ou da “poesia”) dos letristas e poetas-músicos?
A geração à qual Torquato pertence, Caetano à proa, respondeu, criativamente, inundando o País com letras e canções de tamanha estatura poética que fica difícil achar paralelos na poesia escrita do mesmo período. Os mandarins vão ter que dormir com essa.
Mas a hostilidade dos mandarins, guardiães da coroa de louros de Apolo, provocou o excesso contrário: o menosprezo pela poesia escrita que, de Guttemberg à poesia de vanguarda, tem quinhentos anos de evolução autônoma especialidade, diante da poesia da letra de música.
A poesia escrita é uma criação da imprensa Guttenberguiana. Afinal, até o soneto foi feito, no início, para ser cantado. “Soneto” é, em italiano, um “sonzinho”.
Mas a métrica, na poesia escrita, não se explica, se esquecermos que a poesia, nas origens, era “words set to music”, palavras para cantar. A ponto de Ezra Pound, poeta e músico, advertir que a poesia decai, quando passa muito tempo afastado da música, sua matriz e destino.
No Brasil, dos anos 60 para cá, a poesia cantada e a escrita tem dialogando de modo fecundo, em inúmeros momentos. Basta invocar os conhecidos contactos, por exemplo, entre Caetano & Gil e a poesia concreta paulista (Caetano, em “Sampa”, introduz, na música popular, a própria expressão “poesia concreta”). Ou entre a poesia de Chico Buarque e as de Drummond e João Cabral. A essas influências da poesia escrita, acrescentou-se, nos anos 60, a da poesia de Oswald de Andrade & Antropofagia, ressuscitada por reedições e encenações de peças.
A mais conhecida das letras de Torquato, “Geléia Geral” (o nome foi emprestado por Torquato de Décio Pignatari, que cunhou a expressão no editorial de uma revista “Invenção”) é oswaldiana até a medula. No ufanismo irônico. Na enumeração Kitsch-caótica das “relíquias do Brasil”. A mesma dança, ano que vem, mês que foi. A marca oswaldantropofágica, porém, está na própria linguagem de “Geléia Geral”: na técnica de cortes, de flashes, de montagens cinematográficas, de rimas trocadilho (inicia / anuncia), de malandragens verbais.
”Geléia Geral” traz estes dois versos: “resplandente cadente fagueira num calor girassol com alegria”. Percebe-se que a cafona palavra “fagueira” vira “fogueira”, quando você ouve / lê o ígneo verso seguinte. E esse cadente se transforma num incandescente candente. Alta era a arte de Torquato, poeta das elípses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade.
Jovens poetas do Brasil, quem não fez um poema em homenagem a Torquato, atire a primeira estrofe.
A morte de Torquato foi um grande poema, suicídio, a performance máxima. A destruição da vida para a transformação em mito, com nas “Metamorfoses” de Ovídio, onde os personagens morrem só para se transmutar em constelações, em estrelas.
A garotada pegou o recanto.
Torquato é meio-deus para vários poetas jovens que eu conheço. O modelo de sua vida integralmente dada à experiência poética, no fundo, a “trip” do barco bêbado do Rei Arthur, Arthur Rimbaud. Um grande sábio um dia disse que o signo é a morte da vida. Mas, sem signo, vida degradada, a vida não dura. A vida é curta, o signo é longo.
Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros. O Livro de Torquato é esse “Os Últimos Dias de Paupéria”, muito bem editado por Waly Sailormoon, vitrina dos vários possíveis de Torquato: em letra, poesia escrita, ensaios jornalísticos, fragmentos de diário, retrato estilhaço de um poeta por outro poeta.
Essa – digamos – precariedade do “corpus torquatiano” “para falar como os mandarins é um fato de mistério: a incompletude, a obra aberta, o poder ser. Talvez, por isso, Torquato tenha influenciado tanto.
Isso que se chama, imprecisamente, de “poesia marginal” o invoca entre os santos do seu panteão, quando não como “heros ktistes”, deus fundador. Morto aos 28 anos, Torquato deixou fragmentos, “rari nantes in gurgite vasto”, “disjecta membra”, cacos de uma explosão nuclearéxistencial. Mas a realidade, aí, foi de uma grande elegância e precisão. Atingido em cheio pela bomba da modenridade, Torquato dispersou-se em microepifanias, letras, poemas, textos de jornal. O que só aumenta seu pretígio numinal diante de uma geração televisiva, marshal-mclunaniana, descontínua, paratática.
A flor que foi cortada antes do tempo é emblema de todas as virtualidades. Torquato é a divindade que, na poesia brasileira, preside o poder-ser.
Se Torquato é o mártir auto-imolado da poesia cantada brasileira, Mário Faustino é seu desastrado (”hecatombado”) equivalente, na área escrita. Desaparecido em desastre aéreo, Faustino deixou atrás de si o perfume de uma militância poética, que teve seu auge no Caderno B do “Jornal do Brasil”, na época de Reynaldo Jardim, quando Mário, diretor, abriu espaços e tempos para o que de mais radical se fez e fazia. Aberto tanto para o melhor passado quanto para o mais agudo presente, o suplemento de Faustino foi um momento histórico.
Poundiao, Mário Faustino imprimiu ao Caderno B do JB uma diretriz clara, seletiva, paideumática, a única que tem “virtú” para atuar como agente de transformação da cultura: escolhas radicais, a partir de critérios precisos. Como poeta, “último verse-maker”, como o chamou um companheiro de geração, Faustino deixou uma produção incompleta e fragmentária, sílabas para uma palavra que se ia chamar “O Homem e Sua Hora”, macropoema, ao molde dos “Cantos” de Pound, que deveria sintetizar a experiência vital do poeta num todo significante.
Contemporâneos, em alguns aspectos, Faustino é o oposto de Torquato. Torquato é popular, “reles”, pop, para tocar no rádio, sermo plebeius. Faustino é “sermo nobilis”. aristocratizante, altamente letrado, cheio de laivos da geração de 45 (helenismos, palavras raras, preciosismos da expressão, anticoloquialismo). Na poesia Provença medieval, distinguia-se entre um “trobar léu” um “trobar ric” e um “trobar clus”, o poetar leve, o poetar rico e o poeta escuro.
O “trobar léu”, o poeta leve, era o mais parecido com isso que, hoje, é normal na letra da música popular: o verso fluente, fácil de entender, pop. (ver os trovadores Marcabru, Guilhaum de Peitau, Peire Vidal). Palavras solenes e sintaxe elevada, o “trobar ric”. “Clus” era o “trobar” difícil, não acessível à primeira audição, seja pela complexidade da “metaphysical” idéia ou pelo abstruso da imagem, da alusão, pela raridade da palavra ou pela extrema arquitetura musical do edifício verbal da letra (Arnaut Daniel). Nessa lógica “trovençal”, Faustino pratica um “trobar ric”, com ocasiões de “clus”.
Torquato é “léu” e, às vezes, “clus”. A co-existência dessas diferenças entre dois grandes poetas contemporâneos deve ser altamente didática para todos aqueles que querem reduzir a poesia a um só momento, a um só “trobar”.
Em passado “Folhetim”, num ensaio “Forma é Poder”, denunciei a suposta “objetividade” da linguagem jornalística, mostrando como esse efeito é precipitado de uma codificação de linguagem, uma cristalização canônicas de recursos que, estabilizando o discurso, transmita a sensação de “realidade”. Jornalismo não tem “estilo”. Ora, o que há no mundo da inteligência são as especificidades de cada consciência. Todas as cabeças são “estilos”.
A linguagem jornalística é imposta por uma autoridade: um Poder. Mas pode-se dinamitar essa tirania: por dentro, na linguagem. De pronto, lembro três momentos: os jornalismos de Oswald de Andrade, de seu herdeiro, Paulo Francis, e de Torquato. Na coluna que, longo tempo, manteve no jornal. “Última Hora”, Torquato praticou, em nível de massas, a mais ágil das linguagens: esplendidamente “subjetiva”, descontínua, ideogrâmica, blocos carregados de eletricidade, movida a elipses, elípse, a figura-mestra de Torquato, conduzida até a elíptica apoteose de auto-eliminação final, o efeito da Falta.
Não exagero ao dizer que Torquato criou um padrão de jornalismo cultural. Um padrão baseado na extrema criatividade de linguagem. Na hibridização dos discursos: poética, factual, materiais nobres x pobres. Esse jornalismo torquatiano estava a serviço de uma causa, a promoção do super-oito e do cinema marginal, periférico às glórias e consagrações do Cinema Novo, em vias de academização, comercialização e caretice. Breve nas telas deste cinema. Torquato Neto.
Não diz pouco da grandeza do poeta Torquato dizer que sua última grande preocupação foi o cinema, essa arte não-verbal, mas síntese de todas as artes, destino das artes, conforme Eisenstein: destinação do verbal, do gestual, do visual, num só ponto-ômega.
Poesia é ação entre códigos: todo poeta é intersemiótico. É Pound, músico e poeta. Maiakovski: poeta e artísta plástico.
Em termos de Brasil século 20, são conhecidas as relações entre Oswald, Murilo e Cabral e as artes plásticas. Ou as tangências e secâncias entre Bandeira e Vinícius e a música. E “concreta” era a pintura, antes da poesia. O poeta não é um escritor: é um artista.
Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato perfez o fadário de todo vampiro que se preza, a sina dos “un dead”.
Mais conciso que o bilhete final de Maiakovski, o de Torquato diz tudo. Diz quando a vida pode ficar pesada nas mãos de uma criança.
*PAULO LEMINSKI é poeta e compositor, autor de “Catatau” e “Verdura”. Jornal Folha de São Paulo, Folhetim, 7.11.1982.
Texto retirado do blog Torto
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