quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

“TODOS OS DIAS DE PAUPÉRIA”: UMA REVISITA TROPICALISTA AOS ANOS SESSENTA


 
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito

Uma história se faz de releituras. E o trabalho do historiador, como produtor de conhecimentos e captador de subjetividades, é trazer à tona as características enunciadas nas teias discursivas, formuladas nas entrelinhas dos textos, dos documentos e da oralidade. Dessa forma, a poesia, a música e o cinema se apresentam como elementos fundamentais de um discurso transgressor, que reúne e traça análises de uma época.

Buscando estabelecer um retrato analítico da invenção da Tropicália dentro de um contexto histórico-cultural dos anos 1960, Edwar de Alencar Castelo Branco traça um perfil deste movimento artístico que serviu como arauto das renovações nacionais no período mais repressivo da história do país, trazendo para tal cenário novos atores, e enfocando nesta discussão o poeta, compositor, jornalista e cineasta piauiense Torquato Neto.

Dono de uma “poética de estilhaços”, e colocando-se como “sujeito dilacerado”, mais pela sua atormentada compleição psicológica que pelo mundo externo, visto como uma mera consequência, o “anjo torto” Torquato serviu de referencial para todo um conjunto de produções culturais da década seguinte, seja na forma das obras literárias da Geração Mimeógrafo, seja na cinematografia experimental com tecnologia super-8. A revisão de sua obra serve como forma de se compreender a realidade cotidiana de um período de transição entre o tradicionalismo de um país de bases desenvolvimentistas e o resplandecer de uma nova democracia, mais crítica, porque mais versátil.

A obra, organizada em quatro momentos, inicia-se com um panorama dos anos 1960, como uma época de tecnologias afloráveis: a conquista do espaço, resultado da Guerra Fria vivida entre Estados Unidos e União Soviética, tem como consequência uma gama de criações que entrariam para o cotidiano nacional, como a televisão, que se transforma em febre e passa a ser vista como maravilha por uns, instrumento alienante por outros. Nesse contexto, a realidade nacional, vívida em sintonia com o mundo, passa a conhecer, ainda que com certo atraso, as provocações de uma juventude que é, antes de mais nada, contra o sistema, a hipocrisia da sociedade, a constituição familiar, e todos os modelos padronizados e enlatados. Os cabelos grandes, a droga como instrumento de experimentação de um conhecimento impenetrável, a volubilidade nas ações. Nesse contexto, enfrentavam-se modelos distintos de juventude, que iam da vinculação direta ao mundo construído ao engajamento esquerdista. Aí, no entanto, aparecia um grupo que não se enquadrava nem neste nem naquele modelo: se mostrava iconoclasta, anarquista em relação a todo e qualquer dogma político, religioso ou social. O tropicalismo aflorava, mais como filosofia de existência juvenil, expandindo-se, depois, para diversas manifestações de arte.

No segundo capítulo, o autor analisa visões divergentes acerca da invenção da Tropicália, lançando, antes disso, conceitos e paradigmas convergentes a este movimento. Oriundos da busca da juventude por uma liberdade de ações (contida em referências literárias, como On the road, de Jack Kerouac), grupos se desligavam do estabelecido e buscavam o novo, seja ele qual fosse. Nesse cenário, Torquato Neto aparece como membro de um grupo constituinte, ao lado dos já referendados criadores do movimento, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa. As formulações discursivas são pontos de referência para a construção de um conceito de Tropicalismo, ora visto como uma ação casuística, em termo de movimento organizado, ora como uma ideia para a qual diversos “pais” se apresentam.

O terceiro momento enfoca Torquato Neto, em suas aventuras culturais, resultante de sua postura inconstante, parte de um mundo interior sujeito a disritmias e multifacetas. Do jornalista, assinando as colunas “Arte e cultura popular”, “Música popular” e “Geléia Geral”, ao poeta e músico, Torquato caminha entre a inquietude pessoal à genialidade formulada em seus textos poéticos e em prosa. O tom de desabafo, a revolta política ou o prenúncio de um mundo libertário permeiam o gênio propositor de uma nova linguagem, revolucionária. Edwar Castelo Branco analisa, também, a relação do poeta com o desvio de interesses de alguns dentre os principais membros da Tropicália, sentindo-se este traído pelos seus pares no ideário proposto.

Por fim, o autor analisa nos percursos cinematográficos do “anjo torto” uma busca por referências que fundamentem uma marginalidade. Nas produções efetuadas em Teresina (os filmes O Terror da Vermelha e Adão e Eva do Paraíso ao Consumo), em super-8, o poeta quebra com o formato de narrativa teleológica, estabelecida pelo cinema-padrão hollywoodiano. Parte de um circuito experimental, no Brasil, onde disputas internas opunham marginais e cinemanovistas, Torquato leva os espectadores a uma Teresina construída segundo a perspectiva kitsch de uma cinematografia com conceitos claros – a negação de valores – que pode ser resumida na expressão: “Chega de metáforas. Queremos a imagem nua e crua que se vê nas ruas”.

Em sua “vialinguagem”, dividido entre as dúvidas existenciais e a busca por um não-sei-o-quê que aplainasse seus próprios conflitos, Torquato Neto se mostra como o oráculo pretendido de uma realidade mesclada, dos sabores do novo e das amarguras da repressão. Escrevendo, lendo, tocando fogo nas palavras, formulando e irradiando discursos, devaneando sobre as próprias angústias, Torquato enunciou sua destruição na perspectiva da própria obra, difusa, nos acordes dissonantes dos significados. Num realismo beirando a esquizofrenia, o “anjo torto” escreveu e filmou seu próprio sentimento. Plantou em sua obra sua alma, muito embora seus pares tenham desviado-se dos objetivos centrais, libertários, do movimento tropicalista. “Destruir a linguagem e explodir com ela”: o conceito de um ideário nunca plenamente realizado.


Bibliografia

CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.

Resenha publicada, incialmente em duas partes, n'O Piagui Culturalista da cidade de Parnaiba - PI.

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