José Castello
A vida breve, mas fecunda, de Torquato Neto (1944-1972) é uma síntese da grandeza, mas também dos abismos que definem a cultura alternativa e rebelde dos anos 60 e 70. Mais importante pensador do movimento da Tropicália, letrista, poeta, cineasta, ator, Torquato ganha, mais de três décadas depois de seu enigmático suicídio, uma bela biografia, assinada por Toninho Vaz (“Pra mim chega/ A biografia de Torquato Neto”, Editora Casa Amarela).
Como discípulo fiel do mito alternativo, Torquato tinha como ideal destruir o mundo para, nesse mesmo gesto, fazer o parto de um novo. Uns poucos se lembram do empenho, da identificação secreta, com que ele representou o papel de Adão no curta-metragem em super 8 “Adão e Eva, do Paraíso ao Consumo”, produção marginal de oito minutos cujos negativos se extraviaram. É emblemática, e mais conhecida, a altivez com que ele aparece, ao lado de Gal Costa, na capa do LP “Tropicália”.
Em sua festa de 28 anos, comemorada em um bar da Usina, no Rio de Janeiro, o amigo João Rodolfo do Prado, na época editor da “Última Hora” (jornal em que, entre 1971 e 72, Torquato Neto assinou a famosa coluna Geléia Geral) também o viu com o carisma de um iluminado. “Torquato estava messiânico, dando conselhos e distribuindo tarefas”, relata ao biógrafo Vaz. “Ele estava fazendo uso de uma lógica própria, como se estivesse mergulhado num mundo inatingível.”
Mais objetivo, Toninho Vaz prefere assinalar que “é provável que Torquato estivesse fazendo uso de cocaína”. Outra testemunha, o jornalista Luís Carlos Maciel, prefere pensar em uma “viagem” de LSD. Como diz o próprio biógrafo, já não importa saber “qual a substância química que o poeta usou na sua despedida”. Na madrugada seguinte ao aniversário, de volta de uma ronda pelas boates da zona sul, Torquato se trancou no banheiro, ligou o gás e esperou a morte. Foi encontrado só na manhã seguinte, pela empregada Maria da Graça.
Antes disso, em um caderno espiral, ele rabiscou um bilhete enigmático: “Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago que ele pode acordar.” Thiago era seu filho de 3 anos, que dormia num quarto ao lado. Às 9 horas da manhã, Torquato Pereira de Araújo, neto (assim mesmo, com uma vírgula no nome) foi considerado oficialmente morto.
Poeta da ruptura
Entre os últimos textos rabiscados no caderno, havia uma frase isolada, atribuída a Caetano Veloso: “O amor é imperdoável”. Do mais belo, Torquato conseguia tirar o mais horrendo. Por isso, o mais importante na equilibrada biografia de Toninho Vaz é que ele não se deixa convencer nem pelo santo, nem pelo monstro. Encontra os dois dentro do mesmo Torquato e, se depara então com uma figura em fragmentos, a responsabilidade não é sua, mas de seu biografado.
Torquato Neto foi, como Vinicius de Moraes, um poeta para quem a poesia vazava na vida. Não é por outro motivo que é autor de um livro único, “Os Últimos Dias de Paupéria”, só editado após sua morte. Deixou mais de 30 letras de música, assinadas com parceiros célebres como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e Jards Macalé. E um diário do sanatório do Engenho de Dentro, onde passou uma das várias internações a que se submeteu, para tratar não só do excesso de álcool e drogas, mas também de uma depressão crônica.
Toninho Vaz não tenta juntar os cacos desse poeta despedaçado, tampouco impor uma ordem de valor aos fragmentos que recolhe. “Poeta da ruptura”, como Torquato preferia se ver, sob forte influência não só de seus companheiros da Tropicália, como Rogério Duprat, José Carlos Capinam, Nara Leão e Tom Zé, mas também dos cineastas do Cinema Marginal e ainda dos poetas concretos de São Paulo. E, não menos, de artistas inquietos e radicais como o diretor de teatro José Celso Martinez Correa e o pintor Hélio Oiticica.
Mais do que na obra, diz o biógrafo, “a importância de Torquato Neto vai aparecer naquilo que ele fez e disse”. Em outras palavras: naquilo que viveu. Transportando a poesia para a vida, como fez Vinicius, Torquato se transformou em um mito que, como todo mito, fascina, mas também afasta. “Eu sei o que significa um mito, mas se alguém me perguntar vou entrar em pânico e não vou conseguir responder”, resume Vaz, citando Santo Agostinho.
Como os artistas da vanguarda, Torquato tinha dois grandes inimigos: as idéias preconcebidas e o “medo paralisador”. “Quero ir muito além do que já foi feito”, ele repetia. Um poeta cujo projeto era colocar-se a perigo, sempre disposto a enfrentar novas dificuldades e novos obstáculos. A contradição que carregava vinha de berço. Seu pai, Heli Nunes, era espírita kardecista e membro da maçonaria, enquanto a mãe, Salomé, uma católica fervorosa, uma típica beata.
O filho por eles gerado teve um nascimento difícil. Salomé tinha a bacia estreita e, no parto, como relata Vaz, “o bebê foi retirado a fórceps de dentro da mãe, durante uma batalha sangrenta que durou mais de uma hora”. Um movimento brusco do médico provocou um ferimento na cabeça do bebê. D. Salomé passou mais de um ano em tratamento para curar-se das seqüelas daquele nascimento. Torquato nunca deixou de se ver como filho de um trauma.
Vagabundagem inspirada
Foi um menino tímido que, desde cedo, ainda nos bancos escolares, já lia os poetas Castro Alves, Olavo Bilac, Fagundes Varela, Gonçalves Dias. Aos 14 anos, descobriu Machado de Assis. Em 1959, seguindo os passos de outro poeta piauiense, Mário Faustino, decidiu cursar o científico em Salvador. Não podia imaginar a opulência que o esperava. A Salvador do início dos anos 60 vivia grande agitação cultural. Lina Bo Bardi, Joaquim Koellreutter e Glauber Rocha eram só as figuras mais nobres num cenário em que surgia, como diz Vaz, “uma arte agressiva e de vanguarda”. A capital baiana se transformara, diz o biógrafo citando Roberto Rosselini, em uma “Roma negra”.
Mas Torquato ainda não ficou satisfeito. Aos 17 anos, ele se transferiu para o Rio. Foi morar com um tio, Jonathan, no suspeitíssimo edifício Rajah, na praia de Botafogo, e estudar numa escola que, como se dizia, era uma “boate”, isto é, tinha péssima fama, o Colégio Ruy Barbosa. Fez o vestibular para jornalismo, mas não terminou o curso, e começou a trabalhar nas redações da cidade. Na mesa de um bar, o botequim Mau Cheiro, no Arpoador, conheceu sua futura mulher, Ana. Ao lado de amigos como Caetano Veloso e Jards Macalé, começou a viver o que seu biógrafo define como “uma vagabundagem inspirada”.
A festa acabou, ou pelo menos se politizou, com o golpe militar de 1964. A partir dali, a felicidade passou a estar, sempre, ligada à angústia. “Sou um homem triste”, ele escreveu em carta a um amigo, “sinto que sou um homem destinado à latrina”. A fúria vanguardista e a realidade vazia se alternavam à sua frente, ou eram o avesso e o direito de uma mesma experiência. Torquato tinha o porte de um anjo. Aos 21 anos, muito magro, estava com 1,74 metro, mas pesava só 60 quilos. “Eu lembro dele como um sujeito inquieto, muito agitado e algumas vezes dispersivo”, diz ao biógrafo o compositor Edu Lobo.
Era um radical, cada vez mais aferrado a seus preceitos estéticos, atitude expressa em frases assim: “Não se pode matar o príncipe e deixar vivo o princípio”. Como o regime militar também se radicalizava, porém, as vanguardas terminaram partidas ao meio. De um lado, ficaram os engajados, como o poeta José Carlos Capinam; de outros, os alternativos, como Torquato. “Era o momento da ruptura, o ponto extremo da forquilha, quando cada grupo deveria procurar o seu canto no ringue”, diz Vaz, resumindo aqueles tempos.
Nesse turbilhão, surge a Tropicália, movimento que não desejava aderir “nem à MPB pura, nem ao ié-ié-ié”. O ideal dos tropicalistas não podia ser mais ambicioso: buscavam uma mudança radical nos valores. “Eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível”. O impossível era tudo o que pediam.
Contudo, o marco do movimento tropicalista, alerta Toninho Vaz, não está na música, mas em uma exposição do artista Hélio Oiticica, realizada em abril de 1967, no MAM. Ela se baseava nos princípios de um manifesto, assinado pelo pintor, chamado “Nova Objetividade”. O crítico Mario Pedrosa resumiu assim a caótica doutrina: “um exercício experimental da liberdade”. Torquato, em particular, tinha obsessão em se livrar do já feito, para chegar ao osso das coisas e, como dizia, à verdade. “Assim como Oswald de Andrade, ele tentava enunciar quatro verdades em três linhas”, diz Vaz. “Estava nascendo o mito do escriba maldito e destemido, empunhando a pena justiceira e, mais uma vez, destoando o coro dos contentes”, diz o biógrafo. Como num filme de Luis Buñuel, cineasta na moda, surgia um anjo exterminador.
Um péssimo presságio
Torquato se batia, ferozmente, contra a ditadura, contra a indústria fonográfica, contra o conformismo, contra a arte engajada e “inocente” de um Geraldo Vandré. Mas não parava de beber e de se drogar. “Analisando hoje, posso ver como ele se autodestruía”, recorda o empresário Guilherme Araújo. Com a quilométrica letra de “Geléia geral”, que seria transformada em hino do Tropicalismo, Torquato consegue fixar os princípios de suas idéias rebeldes. Aquela letra, no dizer de outro poeta, Paulo Leminski, já apontava para o “poeta das elipses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade”.
Em 1968, o ano das grandes convulsões sociais, Torquato, com sua altivez de aristocrata - como observou Zé Celso - apresenta uma perturbadora, e de certo modo humilde, definição do Tropicalismo: “a ausência de consciência da tragédia em plena tragédia”. Em um artigo no suplemento “O Sol”, sem disfarçar a postura de guru, ele escala a nobreza da Tropicália. Zé Celso seria o papa, Chacrinha o gênio, Gilda de Abreu a musa, e Nelson Rodrigues ninguém menos que deus.
Se havia obstinação e exagero, havia também desesperança e melancolia. “No fundo, é uma brincadeira total”, o poeta escreve em outro artigo, expondo seu pessimismo crônico. “A moda não deve pegar, os ídolos continuarão sendo os mesmos.” Cabelos compridos, roupas ao estilo hippie e uma invejável bagagem artística, Torquato parecia então, nas palavras de Gilberto Gil, “um daqueles meninos de Buñuel, devotos de Lourdes, ou de Fátima”. A busca radical o aproximava da santidade.
Chegaria o momento em que, depois de um desentendimento doloroso com Caetano Veloso, Torquato começou a se afastar da Tropicália. Veio a Passeata dos Cem Mil, a peça “Roda Viva”, a agitação nas ruas, e a paisagem se radicalizou ainda mais. Torquato ainda tentava resistir, mesmo em atos isolados, como quando dirigiu o especial “Vida, paixão e banana do Tropicalismo” para a TV Globo. No elenco, o cantor Vicente Celestino se aborreceu quando, numa seqüência em que se evocava a Santa Ceia, com Gilberto Gil como Jesus Cristo, o pão sagrado foi substituído por uma banana. Ofendido, Celestino abandonou o teatro das gravações, entrou num táxi e desapareceu na cidade. “Horas depois, ele morria de infarto num quarto do hotel Normandie, onde estava morando”, relata Vaz. Era um péssimo presságio.
Quando o AI-5 foi decretado, Torquato estava a salvo em um cargueiro dos correios britânicos, atravessando o Atlântico, a caminho da Europa. “Vou embora porque alguma coisa vai explodir por aqui”, ele disse aos amigos que o levaram ao porto. Estava certo. Logo depois, Caetano e Gil seriam presos, teriam cabelos e barba raspados, se tornando mártires da resistência cultural. Torquato, por sua vez, viveu uma difícil temporada em Londres, onde a mulher, Ana, foi encontrá-lo.
De Londres, mudou-se para Paris. Passaria, ao todo, um ano na Europa. Quando retornou enfim ao Brasil, já no início de 1970, o país era outro. E ele também. “Seu aspecto físico também era outro”, recorda Toninho Vaz. “Ele estava, digamos, mais louco, cabeludo e atrevido - para não dizer agressivo e afetado.” Tempos depois, na luta contra a depressão cada vez mais intensa, o poeta se internou no sanatório do Engenho de Dentro, o mesmo que projetou a imagem da dra. Nise da Silveira. Na ala masculina, ao lado de 35 pacientes, foi tratado com doses fortes do calmante Mutabon D. Via-se, provavelmente, como um Antonin Artaud dos trópicos.
Em seus perturbadores diários de manicômio, ele expõe idéias assim: “Deus está solto e foi Caetano quem gritou primeiro. Posso reconhecê-lo em seus disfarces.” Discretamente, ou em prontuários particulares, os médicos falavam em “esquizofrenia”. Quando enfim terminou a internação, Torquato resolveu viajar para uma temporada de repouso em Teresina, que duraria três meses. Já não seria o bastante. Nada mais bastava.
De volta ao Rio, o cineasta Ivan Cardoso o escalou para o elenco de “Nosferato”, um longa-metragem em Super 8. Torquato seria o próprio Nosferato. “Ele tinha muita identificação com os vampiros, não gostava de claridade e era elegante como um conde da nobreza”, justificou, mais tarde, o cineasta. Sempre desassossegado, Torquato Neto ainda tramaria o lendário almanaque “Navilouca”, que teve um único número. Foi o último clarão, logo depois o desejo de morte venceria.
Artigo publicado incialmente no Jornal de Poesia.
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