terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A volta do poeta da geléia geral

Carlos Ávila*

Dois alentados volumes trazem de volta a obra dispersa do poeta, letrista e jornalista Torquato Neto (1944-1972). Sob o título geral de "Torquatália”, os dois livros apresentam os subtítulos "Do Lado de Dentro" e "Geléia Geral".

O primeiro reúne poemas, letras de canções, textos de manifestos, correspondências e um diário; o segundo, basicamente, todo o trabalho jornalístico de Torquato realizado no Rio de Janeiro: os textos sobre música popular escritos no extinto "Jornal dos Sports", uma breve passagem pelo suplemento “Plug” do também extinto "Correio da Manhã" e, finalmente, a famosa coluna "Geléia Geral", publicada na "Última Hora". A competente organização de "Torquatália" é do professor Paulo Roberto Pires, da Escola de Comunicação da UFRJ, autor de uma esclarecedora introdução e responsável também pelas notas e pela cronologia final.

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina, no Piauí, em 9 de novembro de 1944. Estudou em Salvador e seguiu depois para o sul, onde viveu no eixo Rio-São Paulo, trabalhou como jornalista e participou do movimento de renovação da música popular brasileira, unindo-se a compositores como Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam e outros.

Com espírito questionador e aguçada consciência crítica, Torquato foi um poeta de seu tempo, um tempo um tanto sombrio sob a ditadura militar que sufocava o país. Nesse período conturbado da vida brasileira, marcado simultaneamente pela repressão política e pela grande criatividade (é a época dos teatros Arena e Oficina, da arte ambiental de Hélio Oiticica, dos festivais de MPB, do cinema de Glauber Rocha e depois dos "marginais" Bressane e Sganzerla, da redescoberta de Oswald de Andrade pelos poetas concretos etc.), o poeta compôs algumas canções marcantes, onde palavra & som se integram à perfeição: "Geléia Geral", com Gilberto Gil; "Mamãe Coragem", com Caetano Veloso, e "Let’s Play That", com Macalé. Torquato foi um dos mais radicais integrantes do tropicalismo, um movimento que propunha, segundo ele, num texto da época (1968), "assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar da cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido". Ou seja, uma grande mistura estética (Chacrinha e Oswald de Andrade; guitarra elétrica e berimbau; concretismo e cordel; Godard e Zé do Caixão; Stockhausen e Vicente Celestino; altos e baixos repertórios) e um comportamento irreverente e anticonvencional.

No final de 1968, pouco antes da decretação do AI-5, Torquato parte para a Europa juntamente com Hélio Oiticica. No retorno ao Brasil, já afastado dos antigos companheiros tropicalistas, volta à agitação cultural através da coluna "Geléia Geral" (mesmo título da canção, extraído de um manifesto do poeta Décio Pignatari, na revista "Invenção": "na geléia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso").

Na coluna, publicada no jornal carioca "Última Hora", Torquato atacou a institucionalização do cinema novo, o que acabou levando à sua participação ativa em filmes “udigrúdis” rodados em super-8 por Luiz Otávio Pimentel e Ivan Cardoso. Torquato atuou como vampiro, por exemplo, em "Nosferatu no Brasil". "Um vampiro ensolarado, malandro e desinibido, tropicalizado em cores berrantes, para inveja de seus cinzentos colegas dos castelos dos Cárpatos", na descrição do poeta e crítico Haroldo de Campos. O poeta piauiense também projetou e coordenou a edição única da revista "Navilouca" -uma publicação que buscava aliar toda uma nova produção de poetas, cineastas e artistas plásticos, como Waly Salomão, Ivan Cardoso, Hélio Oiticica, Lígia Clark, Rogério Duarte, Chacal, Duda Machado etc. aos trabalhos dos poetas concretos de São Paulo, Augusto & Haroldo de Campos e Décio Pignatari -mas não conseguiu vê-la editada em vida (a revista só sairia em 1974).

Sua trajetória artístico-vivencial foi rápida e acidentada, incluindo polêmicas e rompimentos, muito álcool (o poeta se submeteu a várias internações) e drogas, até seu final trágico, o suicídio na madrugada do dia 10 de novembro de 1972, depois da festa de aniversário numa boate no Rio.

A obra de Torquato, dispersa por jornais e revistas, mais algum material inédito, foi resgatada postumamente no volume "Os Últimos Dias de Paupéria", organizado pelo poeta Waly Salomão e por Ana Maria Duarte -artista gráfica e mulher de Torquato (a primeira edição saiu pela editora Eldorado, do Rio, em 1973; a segunda edição, revista e ampliada, pela paulista Max Limonad, em 1982). "Torquatália" reproduz o conteúdo das edições anteriores e acrescenta outras produções do poeta piauiense.

No primeiro volume -"Do lado de dentro"- chamam atenção, particularmente, os "inéditos de juventude", a ampliação do "cancioneiro" (revelando outras letras e parcerias) e a intensa correspondência estabelecida com Hélio Oiticica.



Os poemas e textos sobre cinema, os cadernos com anotações e o diário -escrito num hospital psiquiátrico no Engenho de Dentro (RJ)- já haviam sido incluídos em "Os Últimos Dias de Paupéria". Na cronologia final, Paulo Roberto Pires informa que havia também um caderno, hoje perdido, com anotações sobre uma experiência-limite de Torquato: durante um mês, ele tomou LSD todos os dias e registrou suas impressões.

Os poemas da juventude de Torquato, escritos entre 1961 e 1962, que estavam guardados na casa de seus pais e só agora são publicados, apontam para futuros procedimentos em sua obra. Há neles, ainda que embrionariamente, o gosto pelas citações, o diálogo intertextual (leia-se, por exemplo, o poema intitulado "Tema", que cita e comenta o emblemático "José", de Carlos Drummond de Andrade -aliás, uma forte influência em todo o trabalho de Torquato), o tom crítico, a ironia e a sátira, e até sinais do lirismo desencantado de sua fase final.

A ampliação do "cancioneiro", com letras de canções desconhecidas, várias inclusive não gravadas, é interessante, mas não apresenta grandes lances criativos no nível de uma "Geléia Geral" ou de uma "Mamãe Coragem", composições antológicas e mais conhecidas de Torquato. Já a correspondência "casada" com Hélio Oiticica é surpreendente, forma todo um painel de época.

Escritas entre 1971 e 1972, as cartas retratam um período rico e tumultuado: Oiticica numa Nova York elétrica e vanguardista, no auge de seu experimentalismo estético; Torquato, ao contrário, num Rio de Janeiro sombrio, sob a ditadura militar, "completamente perdido depois de um ano na Europa (1968-69), rompido com os tropicalistas, em busca de um rumo profissional e acumulando frustrações" -segundo o organizador do volume.

Questões variadas afloram nesse diálogo epistolar, como a formatação de uma imprensa alternativa no país e a querela cinema novo versus cinema marginal. Uma curiosidade: a última carta foi enviada por Torquato de Teresina, onde esteve internado no Sanatório Meduna. Arte & vida, vida & arte estão coladas e são indissociáveis nessa instigante correspondência. No segundo volume -"Geléia Geral"- está agrupada a produção jornalística de Torquato, ou seja, as colunas que ele assinou na grande imprensa do Rio. Pela primeira vez são reunidos os textos da coluna "Música Popular", da fase inicial de Torquato, então com apenas 23 anos, publicados no "Jornal dos Sports".



Ali está registrada toda a movimentação da geração pós-Bossa Nova (Chico Buarque, Caetano, Gil, Capinam, Edu Lobo, Paulinho da Viola etc.), da qual Torquato fazia parte, ou seja, um período bastante criativo da música popular brasileira, época de festivais da canção e véspera da explosão tropicalista. As colunas são basicamente informativas, com uma série de pequenas notas sobre gravações e lançamentos de discos, shows e programas de TV; às vezes, pequenas entrevistas com seus pares contemporâneos.

Em geral, são textos bem simples e diretos, nos quais já despontam algumas opiniões polêmicas (como uma crítica ao compositor Ataulfo Alves, da velha guarda) que anunciam ao longe o tom mais contundente da "Geléia Geral". Na passagem brevíssima pelo suplemento “Plug” (apenas três textos, em junho de 1971), Torquato migra para a área do cinema e inicia uma cruzada crítica ao cinema novo de Glauber Rocha & companhia; é a época da Embrafilme e do seu contraponto audiovisual: o cinema marginal de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane.

Em agosto de 1971, Torquato iniciou a sua última participação na grande imprensa carioca, com a coluna "Geléia Geral", na "Última Hora". Esses textos também já haviam sido reunidos na segunda edição de "Os Últimos Dias de Paupéria" -reproduzidos novamente em "Torquatália", revelam a face mais radical do poeta/letrista em tempos pós-tropicalistas.

No pequeno espaço da coluna, Torquato aprofunda as críticas ao cinema novo e promove as produções marginais de Sganzerla e Bressane -juntamente com as alternativas em super-8 (esta bitola era a grande novidade naquele momento) de Ivan Cardoso. Abre espaço também para o pensamento estético de Oiticica, revela novos poetas (Waly, Chacal) e músicos (Luiz Melodia, Carlos Pinto), batalha por uma política limpa e correta em relação aos direitos autorais, reproduz textos e traduções de Augusto & Haroldo de Campos e de Décio Pignatari. Mas não deixa de noticiar e comentar intensamente os lançamentos e novidades da música popular brasileira, com destaque para o grupo baiano (Caetano, Gil e Gal Costa).

A coluna "Geléia Geral" funcionou como um verdadeiro "respiradouro" em meio à censura e repressão que se abateram sobre a imprensa e a arte produzida no período militar no Brasil. Era um enclave alternativo na grande imprensa, um ruído em meio ao marasmo e ao conformismo, ainda a ser devidamente avaliado e estudado.

Sempre se encontra aqui e ali algum material disperso de Torquato, através de pesquisas em arquivos e consultas a estudiosos e colecionadores. "Torquatália", com seus dois alentados volumes, ampliou bastante a reunião dos escritos do poeta piauiense, hoje tema de teses e monografias na área acadêmica.

Poderiam ter sido incluídos também, por exemplo, os textos escritos para as contracapas do primeiro LP de Gil, "Louvação" (onde Torquato afirma que "há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira, Gilberto Gil prefere todas") e para o pouco conhecido e nunca relançado LP "Gil-Chico-Veloso por Claudete Soares", com arranjos de Rogério Duprat.

Poderiam ser incluídos também os textos dispersos pelas páginas do tablóide baiano "Verbo Encantado", um deles sobre Luiz Melodia; as letras de "Sem essa aranha" (parceria com Carlos Galvão e gravação de Lena Rios, num compacto da antiga Philips) e "Um dia desses eu me caso com você" (parceria e gravação de Paulo Diniz); as entrevistas à revista "Amiga" (juntamente com Sérgio Ricardo, Marcus Vinícius e Renato Rocha) e ao jornal "Opinião", em 1971; os 17 fragmentos poéticos inéditos publicados pela revista cearense "Araia Pajéurbe", juntamente com uma entrevista do pai do poeta, dr. Heli, etc.

Enfim, não é possível incluir tudo. Dois pequenos reparos à edição: faltou informar que Nara Leão também gravou "Mamãe Coragem" e que as composições "Que Película" e "Quase Adeus" não ficaram inéditas, mas foram gravadas por Nonato Buzar num vinil da RCA Victor, em 1970.

"Torquatália" reapresenta o poeta piauiense às novas gerações, com excelente contextualização no espaço e no tempo. Os dois volumes montam um retrato possível do "torto" Torquato, criatividade e sensibilidade à flor da pele; resgatam com grandeza a vida-obra -dispersa e fragmentada em palavras, sons e imagens- do "menino infeliz" de Teresina.

*É poeta e jornalista, autor de "Bissexto sentido" e "Poesia pensada", entre outros.

Resenha publicada, inicialmente, no site Trópico.

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